Natália Zuccala é escritora, dramaturga e professora. Seu primeiro livro, Todo mundo quer ver o morto, foi lançado em 2017, pela editora Patuá. Atualmente, publica contos sobre e em quarentena no site Agora estou aqui (agoraestouaqui.com), que está construindo junto com artista visual Malua. Formou-se no curso de Letras na Universidade de São Paulo e está cursando especialização em psicanálise no instituto Sedes Sapientiae.
O profano e o profundo feminino em A débil mental, de Ariana Harwicz
Quem declarou a morte da ficção (esta que sobrevive aos tempos sem ceder ao prefixo auto-), esqueceu-se de perguntar às mulheres o que achavam disso. Dentre a literatura mais relevante, interessante e complexa produzida neste século, arrisco: uma parcela significativa é protagonizada por personagens femininas. Narradoras mulheres, que vêm dizer para o leitor cansado do século XXI: não, nem todas as histórias foram contadas. Refiro-me às personagens criadas por Elena Ferrante; à professora e astróloga que nos conta a história de Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk; a Com armas sonolentas, de Carola Saavedra; às narradoras de Torto Arado, de Itamar Vieira Jr; dentre outras muitas. Não abordo aqui, e é importante ressaltar este aspecto antes de prosseguir, o protagonismo feminino na autoria, a representatividade, a presença de escritoras inseridas e reconhecidas no universo literário – apesar do tema merecer relevância -, mas a mulher como personagem da ficção e narradora de sua história.
E é nesta filiação, nesta História das histórias não narradas, que se ilumina a potência de A débil mental, da escritora argentina Ariana Harwicz, lançado no Brasil recentemente pela editora Instante. Nessa curta narrativa de grande densidade (a edição conta com 92 páginas), filha e mãe vivem em um vilarejo distante dos centros urbanos, numa casa simples, em meio ao campo e cuja higiene é certamente questionável. A conexão entre as duas é composta por uma teia imbricada, de difíceis nós, tecidos por violência, negligência, álcool, sexo e, claro, relações das mais complexas com os homens.
Detenhamo-nos neles. A protagonista e sua mãe, durante o desenrolar da narrativa, vão demonstrando dinâmicas de dependência em relação aos machos que as circundam. Estes, por sua vez, apesar de ocuparem um espaço discursivo e psíquico enorme, desempenhando papéis centrais na relação entre elas, em termos da estrutura literária manifesta, têm menos voz do que elas. Nós, leitores, ficamos sabendo, por exemplo, de excursões a bares, regadas à álcool, sexo e vulnerabilidade. Na casa em que vivem, homens vêm e vão, penetram e saem, deixam suas marcas, mas não permanecem. Também são rememoradas, no discurso por vezes lírico, por vezes brutal, da narradora, cenas de uma infância e adolescência sem-pai. Durante este seu crescimento, em contraposição à ausência da figura paterna, temos uma presença materna intrusiva e, vamos percebendo, controladora, que quer ver e dar a ver a sexualidade num jogo incestuoso:
Era a primeira vez que me masturbava de medo, até que a vi. Tinha estado tocaiada em seu casaco de couro, […] E começou a aplaudir a perversão do amor cada vez mais forte, bravo, garota, você é a luz no fim do túnel, parabéns, você já é uma fêmea, bravo, filha você é uma mulher e tanto. Me cobri e saí correndo. [1]
Essa antes garota, reconhecida como mulher apenas no momento em que usa a sexualidade como arma contra o medo, manterá em sua vida adulta um relacionamento adúltero com um homem casado, a quem conhecemos logo no início do livro. Esta figura masculina, por um lado, é fonte de angústia e alimenta um estado de dependência emocional na personagem principal que beira à obsessão, por outro, é também fonte vida: Tem uma mensagem dele e é uma rajada de faíscas como uma ejaculação que me devolve à vida [2]. Estabelece-se entre eles, tendo em vista o casamento como um obstáculo à relação, um jogo de ausência e presença controlado por ele. Deste modo, os homens, não-pais e não-maridos, falos que não provêem, inscreve-se em sua psique e em suas relações principalmente como ausência, como falta. E o que indica a palavra débil, como adjetivo, senão a falta de algo? No contexto da obra, tudo parece sugerir que esta falta está justamente entre as pernas, na cabeça, no nome e no bolso. Não venho de lugar algum [3] é a primeira sentença do livro. Mas como isso seria possível? Todos temos algum lastro de filiação, mesmo essa narradora, viemos de algum lugar e sua progenitora ali está, durante todas as páginas do livro, reafirmando essa origem. Ocorre, porém, que não vir de lugar algum, para esta personagem, parece significar o não ter pai, nem sequer em nome ou fantasma. Ou pertencer a algum marido que o valha.
Além desses vínculos e faltas angustiantes – construídos numa mistura de passado e presente no mesmo tempo verbal, o presente do indicativo -, ainda mais inquietante se apresenta um terceiro elemento que costura toda obra: a natureza. Por morarem em um vilarejo de interior, mãe e filha têm em volta de si animais e plantas dos quais se alimentam, o que, não fosse este o livro que é, poderia indicar uma conexão com a natureza bucólica e bela. Porém, Ariana Harwicz constrói o avesso desta imagem idealizada de uma natureza geradora, nutriz, mãe, porque não é a pulsão de vida a força mais atuante na gaia-mãe figurada nesta obra, mas o caos, a violência e a morte.
Fica claro que estas imagens são concepções deliberadas da autora em uma aposta na construção literária de um lugar profano para o feminino, em contraposição a concepções, mais instagramáveis e com maior aceitação social, como as de sagrado feminino, por exemplo. Concepções estas que, se para algumas de nós podem levar à libertação, para outras (e me incluo nesta lista) estão mais próximas de uma armadilha tentadora, armada por nós mesmas e cuja finalidade obscura é devolver-nos a certas posições oriundas de dinâmicas históricas misóginas e patriarcais. Explico-me. Na História da Arte – ou melhor, numa história hegemônica da arte que não contempla, claro, toda a produção artística elaborada pelo ser humano – pelo menos do Renascimento até o século XX, o corpo da mulher teve seu lugar garantido como objeto do discurso artístico. Nós habitamos a tela como objeto da pintura, os poemas como objetos dos versos, as canções como objetos das letras, fomos criaturas e não criadoras – sei que opero muitas generalizações e reduções aqui, mas o faço, por um lado, para fins ilustrativos e, por outro, para não entrar em detalhes que nos podem fazer perder o fio da meada. Chamem de musa os mais românticos, eu digo natureza morta. Ao corpo feminino coube o lugar de natureza morta, coube ficarmos bem paradinhas entre flores, frutas, paisagens e animais silvestres, enquadradas. É claro que aqui não abordo o ser humano feminino como indivíduo, ou o masculino, mas às representações associadas ao nosso corpo, e ao deles.
Voltemos ao presente, para reobservá-lo. Hoje, a desconstrução da natureza como lugar de pulsão de vida protagoniza algumas das discussões mais interessantes do campo literário e associo este fenômeno a novas perspectivas acerca da feminilidade, tendo em vista que essa temática aparece recorrentemente vetorizada por personagens femininas. Para permanecer no perímetro já delimitado neste texto – mas seria possível ainda citar Meu ano de descanso e relaxamento, de Ottessa Moshfegh e A vegetariana, de Han Kang, por exemplo -, observemos como estes conflitos ficam evidentes em Sobre os ossos dos mortos e na tetralogia napolitana de Ferrante. No romance da polonesa Olga Tokarczuk, em nome da paz se mata e para proteger certa parcela da natureza se destrói outra. Já na série inaugurada por A amiga genial, essas tensões se apresentam, de maneira menos alegórica e mais densa, em Lila, personagem em cujo corpo conflituoso habita o medo da desmarginação, da falta de contorno, medo da dissolução de si na parcela dionisíaca da existência, no que há de incontrolável, ou seja, pulsão de morte; observemos essa subjetividade em contraposição e em tensão contínua com sua amiga Lenu, narradora-escritora que ascende socialmente através de um construção apolínea, habitando os lugares predominantemente masculinos, como a academia, ou mesmo a literatura, e deixando para trás sua Nápoles de terremotos e verões ardentes.
A narradora de Harwicz se insere neste contexto tão profícuo, intensificando o tom das discussões do campo literário. Quero dizer que reina um halo de morte. Também não. Que a morte está presente demais entre a boca de mamãe e a minha [4]. Para ela, mãe-natureza é morte, não vida, talvez tal qual a metáfora lacaniana da mãe como uma boca de crocodilo que, se não engole e tritura seus filhos, é somente pela presença do falo-pai inserido como pau/madeira entre seus dentes para impedir seu fechamento. Quem sabe venha daí a insistência do significante boca, ora acompanhado de palavra ora de beijo, numa tensão diante da qual a narradora de A débil mental tende sempre ao último vocábulo e não ao primeiro. Como se idioma, linguagem e língua, fossem território do outro, do homem, do falo, da fala, e a ela só restasse o sexo e a saliva, a boca que engole e depois mata, vagina dentada – posição claramente contraditória, afinal ela é a narradora, ela detém a palavra:
De onde vinham esses vocábulos? Por que havia preferido esses a outros? Que idioma escolher para batizar as coisas? Como alguém é capaz de falar? […] Essa transmutação de boca em divindade. Como uma doença genética incurável, terminou seu discurso e nos beijamos. [5]
Nunca nos esqueçamos, porém, que a aquisição da linguagem, o processo de aprendizagem da língua e, mais intensamente, da escrita, é permeado por violência – e não me refiro somente àquela castradora-educativa-formativa. Não à toa, essa dinâmica entre boca-palavra e boca-beijo insiste nesse curto livro. A violência e a agressividade, por não serem compreendidas como facetas construtivas da existência – apesar de serem necessárias para a constituição humana e para a edificação de toda obra ou conhecimento -, são ainda mais proibidas à mulher do que os lugares de falo, de fala, de agência. Como se fosse possível construir sem destruir, à mulher somente é permitida metade da equação, o empoderamento só pode ocorrer se não implicar em agressividade ou violência. Deste modo, tentamos nos inserir passando imunes aos lugares de faca, de corte e, afinal, de verso e recorte: A senhora tem que pôr à prova suas pulsões, tem que pegar a faca pelo cabo e se aproximar devagar para ver que na verdade não vai enfiá-la. [6]
Não sejamos ingênuos, porém: parir, um corpo humano ou uma obra de arte, impõe inúmeras mortes a quem o faz. E Ariana Harwicz sabe e se usa disso em sua obra, aprofundando o tamanho dessa boca enorme a qual todos tememos.
Referências
[1] ARIANA, Harwicz. A débil mental, São Paulo: Editora Instante, 2020, página 29.
[2] Idem, ibidem, página 27.
[3] Idem, ibidem, página 7.
[4] Idem, ibidem, página 15.
[5] Idem, ibidem, página 19.
[6] Idem, ibidem, página 23.